A rave é na minha rua
É assim: o cara compra uma casa de R$ 2 milhões e acha que tem de dar uma rave todo mês para valer cada tostão.
​
A última festinha foi no feriado da Páscoa. Bem ali na minha rua, na minha cara, no meu ouvido. Eu acho que pelo menos eles deveriam colocar nas caixas de correio dos vizinhos um envelope com comprimidos de ecstasy. Porque para aguentar essa música insuportável, só consumindo mesmo substância ilegal. Não me entendam errado. Eu não uso ecstasy, nem droga nenhuma. Sou até crente. Mas confesso que peco quando um mala desses resolve me roubar uma noite de sono. E podem me chamar de mal-humorada, to nem aí. Quanto vale a sua noite de sono, aliás? É Sábado de Aleluia.
Os supostos cristãos, que não comeram carne na sexta para lembrar a morte de Jesus, agora enchem a cara de vodca para lidar com a fossa pela morte do Cristo. Que luto deles, que luta a minha...
​
Eu viro para o lado e tapo o ouvido com o travesseiro. O relógio no criado-mudo é meu algoz. Ele avisa: 1 AM. A janela treme ao som da mesma música de uma hora atrás. O DJ de rave, aliás, é o profissional que ganha a grana mais fácil do mundo. Ele leva uma música só para a festa e toca a maldita a noite inteira para os convivas, que de tão chapados não percebem que estão sendo enganados.
Abro a gaveta para matar a saudade dos tampões de ouvido que comprei para ocasiões assim. Eles são umas espumas azuis altamente eficazes: depois de devidamente inseridas na orelha, você pode bater palmas e não ouvir seu próprio som. De tão bons, não são recomendados para familias com crianças, afinal os pequenos poderiam acordar e chorar horas a fio sem que a mãe se desse conta. O jeito é esperar mesmo. Uma hora passa, eles vão se cansar, imagino.
​
2 AM. Resolvo dar uma de macho - aliás, o macho dorme tranquilamente ao meu lado com o auxílio do tampão mágico. Pego o celular e ligo para o 190. Do outro lado da linha, a atendente finge interesse e pergunta o endereço. Eu delato o vizinho com um sorriso sádico no canto dos lábios e dou nome falso só para evitar constrangimentos ao chegar e sair de casa (como se fosse eu a transgressora da lei). Eu desligo e penso: "Agora eles vão ver o que é Lei do Silêncio, os FDP".
3 AM. Nada de sirene, só o tum-tum-tum do DJ é o que ouço... Ligo para o 190 perguntando se vai demorar e faço o discurso mais apelativo que me vem à cabeça: "Tenho filho pequeno". digo, atrás de uma alma solidária. Sem retorno. Aí eu solto essa: "Pode vir aqui que vocês vão apreender uma quantidade absurda de drogas". A mulher mais do que depressa retruca: "Ah, se tem droga tem de ser com a polícia civil. Ligue 197", diz, aliviada por me despachar. Obedeço. Sento na cama e disco 197. como ela mandou. O menu é complicado, repito a operação umas quatro vezes porque no escuro sempre aperto o botão errado do telefone. Finalmente, consigo falar com alguém depois de uma espera que essa sim - quase me faz pegar no sono. O sujeito diz: "Ah, mas isso aí é problema da delegacia mais próxima dai". Então eu pergunto: "E qual o telefone de lá?". Ele me manda de volta para o menu e eu fico mais um tempo na fila de espera. Finalmente um caboclo me atende bocejando. Eu digo que quero falar com a delegacia do Lago Sul para acabar com a rave que está rolando há horas, dias, talvez anos, na minha rua. E ele, assim mesmo, sem o mínimo pudor, pergunta se eu posso ligar no 102 para ter auxílio à lista.
​
Eu desligo o telefone p. da vida e começo a pensar naquelas pessoas da rave. Será que eles atendem os celulares para dar satisfação a pais desesperados à procura deles? Aposto que não. E vou além: levam flores para as mães no segundo domingo de maio como se isso fosse reparar tamanha falta. Resolvo ir até o berço e lá faço uma pequena oração: "Meu Deus, não deixe meu bebê ir a uma rave, nunca, nunca. Faça com que os amigos dele fiquem com sono às oito da noite".
Fecho a porta do quarto e vejo os primeiros raios de sol. O tum-tum começa a murchar mais ou menos na mesma hora em que o aquecimento solar automático da piscina percebe o calor do dia e dispara o seu motor. Quase sinto o cheiro da marola de maconha que deve estar rolando. Uma amiga entendida do assunto me esclareceu uma vez: "Eles não são maconheiros, menina. Quem vai a uma rave usa droga estimulante a maconha é para relaxar. Não com na com esse tipo de música. No máximo, elespuxam a onda da maconha lá no final, só para fechar a festa", avisa minha consultora para assuntos alucinógenos.
Penso em ir até a casa da rave. "Vou pregar o polegar no interfone para acordar todo o mundo." Depois tenho uma ideia ainda melhor: vou contratar um carro de som para tocar Roupa Nova no ouvido deles o dia inteiro. E caio na real: vou mesmo é ter a classe e a elegância que faltam aos meus nobres vizinhos. Tenho de passar maquiagem para disfarçar as olheiras e sair de salto alto.
O bebê, claro, acorda. Dando a noite como perdida, passo uma mensagem para minha melhor amiga, que mora na quadra vizinha. "Dani, vamos aproveitar o domingo para caminhar?" A resposta vem logo depois no celular: "Não, amiga. Vou dormir agora. Fiquei acordada por causa de uma rave aqui na minha rua".